Publicação: http://oglobo.globo.com/opiniao/receita-para-capturar-leao-20402006
Autor: Demétrio Magnoli
Data: 03 de novembro 2016,
O ‘controle externo da Receita’
significaria, de fato, violar a autonomia do Fisco, subordinando-o aos
interesses de máfias políticas articuladas a lideranças sindicais
Al Capone não caiu por ser um gângster, o maior de sua época, mas pelo crime banal de evasão tributária. Sem uniformes policiais, longe dos holofotes, auditores fiscais integram as equipes da Lava-Jato que desmontam as redes de corrupção erguidas na administração pública. A Receita Federal converteu-se em ameaça perene aos figurões bandidos da nossa pobre República. É por isso que, do ponto de vista deles, é vital enjaular o Leão, submetendo-o ao comando dos delinquentes de gravata. Os caçadores saíram a campo, armados com um pretexto fabricado no mundo sindical.
Nos idos de 2009, um certo Paulo
Antenor, atual suplente do senador Magno Malta (PR-ES) e então presidente do
Sindicato dos Analistas Tributários (Sindireceita), definiu uma fórmula de
campanha sindical. Insurgindo-se contra a proposta de reservar o cargo de
secretário da Receita a auditores fiscais, explicou que “há muita gente
competente na área tributária que não está na Receita”, para concluir alertando
sobre o risco de “tornar a sociedade refém de interesses de servidores”.
Antenor, o anticorporativista de quermesse, traçava um rumo: de lá para cá,
onde está o Sindireceita, aparece uma faixa com o bordão do “controle externo
da Receita”.
Auditores fiscais são autoridades
administrativas da Receita. Analistas tributários são técnicos auxiliares dos
auditores fiscais. Sob a cobertura do bordão “anticorporativista” criado pelo
esperto Antenor, o Sindireceita ofereceu um intercâmbio mutuamente vantajoso a
políticos de diversos partidos. Basicamente, em troca da “valorização” dos
analistas tributários, os parceiros políticos conseguiriam perfurar as regras
de autonomia da Receita, nomeando aliados para os postos de chefia do órgão
federal. Uma parte crucial desse programa condensa-se no Projeto de Lei 5.864,
que será votado na Câmara nos próximos dias.
No começo, em 1985, eles eram “técnicos
tributários”, servidores de nível médio. Logo, seguindo a onda geral de
“valorização” de setores do funcionalismo com valiosas conexões políticas, os
salários deles conheceram expressivos aumentos reais. Mas uma mudança de
patamar ocorreu em dois saltos, entre 1999 e 2007, quando se tornaram
“analistas tributários”, servidores de nível superior. O PL 5.864 completa o
percurso, declarando-os autoridades administrativas, atribuindo-lhes funções
privativas dos auditores fiscais e promovendo nova elevação salarial real. Será
mais uma das “bondades” do Congresso, em benefício de uma casta de mais de sete
mil funcionários públicos, na hora em que a maioria esmagadora dos trabalhadores
enfrenta a retração salarial e o desemprego.
Comumente, “bondades” como essa são
distribuídas por parlamentares em troca, apenas, do apoio eleitoral das
corporações sindicais. Nesse caso, porém, há algo mais: a oportunidade de
subjugar o Leão, colocando uma coleira no seu pescoço. O “controle externo da
Receita” significaria, de fato, violar a autonomia do Fisco, subordinando-o aos
interesses de máfias políticas articuladas a lideranças sindicais.
Uma certa Silvia Alencar, atual
presidente do Sindireceita, tem muitos amigos, em diversos partidos. Três anos
atrás, numa evidência de ecumenismo, sua vitoriosa candidatura sindical ganhou
vídeos de apoios de congressistas do PT, PCdoB, PDT, PMDB, PSD e PP. Num desses
acasos extraordinários, a relatoria do PL 5.864 ficou com o deputado Wellington
Roberto (PR-PB), um dos mais notórios soldados da tropa de choque de Eduardo
Cunha. Seu substitutivo, resultante da agregação de diversas emendas, determina
o “compartilhamento da autoridade tributária” entre auditores fiscais e
analistas tributários. É a realização do sonho do Sindireceita — e de tantos
políticos atemorizados pelo avanço da Lava-Jato.
Nenhuma lei diz que o secretário da
Receita Federal deve ser um auditor fiscal de carreira, mas a reserva do cargo
às autoridades tributárias é parte da tradição e está prevista no regimento
interno do órgão. Expandindo o conceito de autoridade tributária a mais de sete
mil analistas, o PL 5.864 abre múltiplas rotas para a barganha política da
nomeação do secretário — e, numa previsível reação em cadeia, para o
preenchimento dos cargos regionais de chefia com funcionários “de confiança”. A
Receita ficaria, então, sob o “controle externo” das máfias políticas — assim
como, até outro dia, a Petrobras, a Eletrobras, o BNDES, o Banco do Brasil e a
Caixa Econômica Federal.
O estabelecimento de burocracias
públicas profissionais, meritocráticas, é uma marca do Estado-Nação
contemporâneo. No Brasil, a elite política conseguiu evitar a conclusão desse
processo, apropriando-se da prerrogativa de indicar dezenas de milhares de
funcionários em cargos de confiança. A operação parlamentar de captura da
Receita evidencia que, em meio às turbulências geradas pela Lava-Jato, as
máfias políticas encontram meios de reagir, protegendo seus interesses vitais.
Afinal, eles conhecem, tanto quanto nós, o epílogo da saga de Al Capone.
A Receita permaneceu, até hoje,
relativamente insulada dos balcões de negócios da baixa política. As leis de
carreira concentraram a autoridade tributária numa seção singular de servidores
concursados, que são os auditores fiscais. Uma série de controles
institucionais reduzem as oportunidades de corrupção e a margem de manobras
políticas no interior do Fisco. A finalidade do substitutivo de Wellington
Roberto é explodir a concha que envolve o órgão, inchando-o subitamente pela
adição de uma nova categoria de autoridades tributárias representada por um
sindicato altamente politizado.
Os chefes das facções criminosas
comandam suas organizações a partir dos presídios. O PL 5.864 deveria ser
examinado à luz dessa experiência brasileira. Da sua cela, em Curitiba, Eduardo
Cunha tem ao menos um motivo para sorrir, enquanto admira o nascer de um sol
quadrado.
Demétrio Magnoli é sociólogo
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